domingo, 18 de novembro de 2007

"Putaria"

Lembra-se daquela moda das camisetas pretas, com as palavras "dignidade" ou "respeito" escritas em maiúsculas brancas, sem mais nada, como se fossem statements completos? Respeito para quem, e por que? A quem faltava dignidade, a quem vestia, a quem lia a camiseta ou a um terceiro ausente? Camisetas caras, que ficam bem em gente que faz Pilates.

Eu dava aula num dia desses, naquela turma da noite divertida, quando um aluno fez um comentário muito pertinente. Escutei atenta, como sempre, até que caí na risada: "Turma, olha só esse colega de vocês, olha a camiseta dele, vocês viram? 'Putaria', está escrito 'putaria', olha só."

Era também um statement, sem alvo claro. Putaria era o que ele defendia, era o que ele denunciava? Ele retomou o comentário, eu procurei escutar mas disse, citando Goffman, que a incongruência entre seu figurino e seu texto me fazia cócegas. Contei que na minha época as distribuidoras de petróleo, com medo de estatizações, davam adesivos para vidros com os dizeres: "Petróleo, quem distribui também contribui." O DCE da USP lançou a paródia "Cannabis, quem distribui também contribui." Era aquele restinho da idade da ironia, que começa na terceira série do primário, não se se de acordo com Piaget ou comigo mesma, e tem fim indefinido.

Mas se o adesivo da maconha era meio datado, com toda a violência das drogas e coisa e tal, a camiseta da putaria me parecia bem apropriada. Nossas convicções são rasas, condensáveis em poucas palavras e, especialmente, fáceis de virar do avesso.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Filha da Rosa

Hoje pensei na minha mãe, que foi professora, vocês sabem. Inclusive às vezes digo aos alunos que seu nome era Rosa e se sentiria honrada em ser lembrada por jovens tão dinâmicos como eles, ainda mais no contexto da docência de sua filha.

No começo do ano fizemos uma homenagem a ela e chamamos os colegas do Mackenzie. O Orlando estava nostálgico da época em que dava aulas com minha mãe. Sorumbático, diria ela. Ou meditabundo, minha mãe era cheia de expressões. "Mas as aulas não tem animam, Orlando?", eu perguntei. "Ah, as aulas, eu não sou como a Rosa. Os alunos seguravam a Rosa depois da aula, a aula não era só uma aula."

É verdade, minha mãe chegava sempre tarde para o jantar, "Os alunos me seguraram." Não sei o que tanto tinham para perguntar para a professora de estatística, entre todos os mestres, mas que seguravam seguravam.

Se eu disser que tenho 15% da simpatia de minha mãe é um exagero. Sou chata, brava, crítica e pró-americana. Outro dia perdi a calma e abandonei-os por 10 minutos, batendo a porta, porque estava de regime e um aluno sussurou algo.

Mas eles me seguram depois da aula.

Ainda a deferência

Hoje fui à Fapesp assinar uns papéis mas chegando lá o prédio imponente de concreto me desnorteou e eu fui tirando os papéis da pasta sem saber o que com eles fazer. Haviam me dado, enfim, a grana para ir aos Estados Unidos, depois de umas tantas petições. Quem havia me dado? Era o mesmo parecerista que negou inicialmente? E por que agora me dava?

Mas na porta há apenas uns meninos em frente a computadores, como se você estivesse no laboratório Fleury e eles fossem coletar a sua urina para exames. Depois veio um homem e me tratou com deferência, uma deferência falsa, pois olhou meu jeans e meu jeito atrapalhado e pensou: não foi essa aí que escreveu a petição tão chique, foi outra (sim, pensei na clarice e na sua petição chique).

Imaginei que alguém tivesse treinado o homem, trate os afro-descendentes com respeito, trate os fisicamente desafiados com naturalidade, trate os bóias-frias do saber com delicadeza. Não importa o que a pessoa faz, lhe disseram, mesmo o mais humilde professor em tempo parcial merece consideração. Que não por outra razão, por ter preenchido todos esses formulários que a gente exige.

Saí de lá sem saber que experiência não vivida aquele encontro burocrático me recordava. Não era o Kafka, pois meu processo era cristalino, teria fim. Não era a visita de Arendt à Gestapo, se bem que essa tinha sido até bastante cordial. Não era o Detran, no Detran me assaltavam e aqui me faziam a gentileza de devolver parte do botim. "O dinheiro já deve estar aqui ainda antes do feriado, professora."

Um bolsa-família, um seguro-desemprego. Era isso. Depois veio um menino ainda mais coitado que eu pegar sua iniciação científica. Por que é que no Brasil até as instituições que funcionam tem essa cara de senhor de engenho?

sábado, 10 de novembro de 2007

Cachorro entra em sala de aula em universidade do interior

Um cachorro preto, vira-lata, entrou na sala de aula de uma turma de administração pública, em torno das 21:20h, quando os alunos ainda se acomodavam para uma aula de psicologia social.

Não tenho receio nenhum que essa notícia vá parar nos jornais, então confidencio-a a você com tranquilidade. Para mim parece importante, mas para os leitores dos grandes jornais brasileiros não será; às vezes acontece o contrário, e aí é preciso ter cuidado.

Os alunos quando entram na sala pensam se querem ficar perto do professor ou da porta, para o caso de a aula tornar-se insuportável; se querem ficar com os amigos e dar risada, ou com as meninas e fingir que precisam do caderno emprestado. O cachorro também tinha suas dúvidas e seus critérios, e olhou para um lado e outro, esticando o pescoço, enquanto descia as escadas da sala estilo anfiteatro.

Eu disse: "Olha lá, aluno novo!" Os alunos riram, "Transferiu da Sociais, viu que não tinha futuro." Eu ri.

Na aula anterior discuti como analisar entrevistas, o que destacar nelas, que ausências notar, onde elas expandem nossa compreensão das relações sociais. As questões dos alunos eram boas, sobre a isenção do entrevistado, sobre a indução das perguntas e coisa e tal. Nessa aula eu tinha me prometido não descontar nos alunos minhas frustrações com a escola; quem mais se prejudicava com isso era eu. Afinal, gosto de dar aulas, gosto de ensinar e se eu detonar esse espaço da sala de aula fico só com a riquíssima vida intelectual de minha universidade e morro de inanição.

Disse que não é preciso ser isento, nem possível. Mas que o distanciamento e o olhar objetivo devem ser buscados, citei Simmel e seu estrangeiro. Disse que às vezes nem isso é possível, e mencionei que naquele dia mesmo meu olhar objetivo não funcionou. Conta, professora. Não posso. Conta sim, conta o milagre mas não o santo. Contei, analisamos a situação e as causas de minha falta de objetividade. Rimos de tudo, de mim, da situação. No final, agradeci. E voltei à aula.

O cachorro, a minha confidência, estávamos ficando amigos, a classe e eu. Na semana seguinte dividi a classe em dois grupos, uns que defenderiam a tese de que existem razões legítimas para a ação americana em outros países, outros que diriam que o poder americano era só o que estava em jogo. Pedi que alguém moderasse o debate e entrei no grupo minoritário dos legitimistas.

"Bom, massa disforme de maria-vai-com-as-outras, comecem", eu disse, quebrando o gelo. O outro grupo pediu ao moderador a minha expulsão do debate e começamos. Eu tinha dúvidas se os parceiros do meu grupo estavam mesmo comigo ou se estavam lá por ironia, mas não, precisa ver que argumentos legais. Temas: tolerância cultural, consumismo, leis internacionais, a definição de legitimidade, relativismo de valores. Debate bom, com briga e tudo. Me alonguei numa intervenção, e escutei essa: "Democracia, democracia, no final das contas é a sua voz da autoridade que conta." E também essa, dirigida a um dos legitimistas: "A posição da professora ficou clara, as intervenções não tem razão econômica, são apenas voltadas à estabilidade mundial. Quero saber sua opinião, Portuga, você concorda com isso?" Pergunta feita com fel. O Portuga falou bem, disse que a professora tinha apenas ressaltado um aspecto, mas claro que questões econômicas também entram na equação. Trabalho de equipe.

Depois o pessoal do fundão que chegou atrasado queria participar, e o moderador os boicotava. Os dois grupos que já tinham, através do conflito, criado uma relação, se uniram: periferia, não vem que não tem. Olha aí o terceiro mundo querendo voz.

Enfim, tenho me divertido com esses meninos. Terminamos o debate às 22:30, com o ritual da chamada. Até às 23:00 os alunos me perguntavam: as perguntas que elaboramos para o trabalho estão boas? Falo com gente que fez intercâmbio ou não? Se eu quiser estudar fora como faço? E se o pessoal no Japão não responder o questionário? Etc., etc. De onde vinha - essa é a questão - a autoridade? Não a autoridade da chamada, das notas, mas aquela que os deixa até as onze da noite me fazendo perguntas, como se eu soubesse o que é melhor.

De onde vinha a deferência por meu conhecimento e experiência?, que é algo que estranhamente não é cultivado na universidade. É possível que ela até se manifestasse mais depois das brincadeiras, das confidências, de me verem disputando um debate de igual para igual. Mas ela não poderia vir disso. Acho que com essa turma acertei em dar uma aula inteira sobre minhas pesquisas, como faço entrevistas, como redijo meus textos. Se eu não tivesse Lattes, como descobri que tem gente que não tem, aí não teria essa aula. E talvez não tivesse a que ter deferência... E o respeito seria algo vindo da tradição apenas, do que os pais disseram que se deveria ter pelos mestres, sem vínculo com a experiência da sala de aula.

Sala de aula que é - como acredita essa boa aluna da sociologia americana - construída a cada encontro, a cada texto, a cada discussão. A deferência é algo que o professor tem que arrancar dos alunos a cada semana, como um feirante arranca da dona-de-casa a cada semana suas notas de dez. Se no final do curso os alunos não te perguntarem o que fazer da vida - não que você saiba, não que você não tenha a obrigação de dizer que não sabe - me desculpe mas talvez você seja melhor feirante que mestre.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

O Quarto Herdeiro

O feijão-com-arroz de minhas aulas é o seguinte: dou perguntas com objetivos específicos sobre um texto ou tema, peço aos alunos para se dividirem em grupos e as discutirem, e vou passando de grupo em grupo para saber como vão indo. Depois fazemos uma discussão geral com as questões trazidas por cada grupo. A aula dessa semana era sobre a experiência urbana moderna, que trazia impessoalidade, especialização, liberdade, individualidade e riqueza. Lá pelo final da aula um aluno no fundo me pergunta o que a questão da especialização e da objetividade diz a respeito de sua futura profissão de funcionário da máquina pública. Eu, que me acho Ph.D. em relacionar teoria e prática, tive que pensar. Estava num plano abstrato, sonhava com os relógios de Simmel concatenando a vida em Berlin. Pedi ao aluno que esclarecesse melhor a pergunta enquanto eu pensava alguma coisa.

Retomei alguns exemplos dados um pouco antes, o do médico que lê imagens o dia todo, e o do revisor de textos de um jornal, que nunca entram em contato com ninguém mas que não podem esquecer que há um médico, ou um jornalista, e em última instância um paciente, e um leitor, que dele dependem. Também assim, o auditor das contas da prefeitura deve manter seu olhar objetivo sem perder de vista que o Estado está lá para prover serviços públicos, e que as contas que ele examina não são um fim em si mesmo; ele não pode ser perder em picuinhas nem aprovar algo formalmente adequado que esconde falcatruas.

Aí saí da pergunta e comecei a contar a história do apartamento do tio Gilberto, e dos inúmeros documentos que o juiz pediu para autorizar a venda do referido bem, e que incluiam o inventário do avô Miguel morto em 1937, o atestado de óbito do bisavô Jacob Schnaider em 1936, e - pasmem - o atestado de mudança de nome de meu pai de 1948, de Henry Pait para Henrique Pait, nome pelo qual foi conhecido a vida toda. Era óbvio que o juiz não pensou em justiça quando encalacrou a venda; era óbvio que não desconfiava de fato que havia maracutaia em nosso pedido de alvará, e sabia que não havia nenhum herdeiro enganado, perdido por aí nos últimos 70 anos, a quem não queríamos dar a quarta parte do apartamento da Melo Alves. Mas o juiz se enamorou por todos aqueles nomes, pelos erros de grafia, pelas mudanças de identidade e ideologia ocorridas ao longo do século XX. Justiça, o que tenho eu a ver com isso? Sou apenas juiz, veja bem.

Há algo mágico em contar uma história pessoal em sala de aula. As conversas paralelas se suspendem. Os personagens ficam grandes, vivos, importantes. Voltei ao assunto, e disse que os documentos extras não diziam nada ao juiz, e que se houvesse maracutaia eles estariam até melhor apresentados e mais coerentes que os que de fato contavam a vida de minha família. E que um mix de objetividade e subjetividade era necessário no exercício de sua função. Disse ainda que quanto mais documentos se pedem, pior fica para quem é idôneo, melhor para quem não é.

E aí houve a polêmica. "Do jeito que o brasileiro é malandro, se não tiver regra vira zona." Contra-argumentei com meu curso como prova material. Eu deixo vocês trabalharem em casa, não dou prova em aula, cobro apenas o que eu acho necessário para a realização do trabalho, e depois confio que vocês fizeram as entrevistas, leram os textos, produziram análises. Se eu pego alguém que burlou as regras, reprovo e pronto, mas não posso prejudicar o grupo todo por um que vai plagiar, e que vai ser desonesto de qualquer modo.

Afinal, eu sou responsável pelo desenvolvimento intelectual de vocês.

Já estávamos no final da aula das 9 da noite de quinta-feira, e veio também do fundo: "Mas como você pode valorizar tanto a responsabilidade individual de cada aluno e ao mesmo tempo atribuir a você a responsabilidade sobre o curso?"

Sim, como é que eu poderia? Como é que eu poderia me sentir responsável por algo que ia além de minha iniciativa pessoal? Como é que eu não apenas dava as aulas, indicava os textos e seja o que deus quiser? Como é que eu não fazia como o juiz e pedia uns documentos a mais, assim, só por pedir, sabendo que o quarto herdeiro só existia em seu cérebro de ostra, e que bandidos de verdade roubavam casas em processos fraudulendos ali mesmo, na sua própria jurisdição?

Disse que não era meu o mérito por trabalhos brilhantes de alunos que até desdenhariam de minhas orientações, nem minha a culpa por trabalhos ruins feitos por alunos que, digamos, não priorizaram o curso nesse semestre; mas que pela qualidade média dos trabalhos finais eu era responsável. Que uma explicação boa esclarece, uma orientação boa dá caminhos, um texto bem escolhido informa. Que era minha, sim, a responsabilidade. E que ela não excluia a a responsabilidade deles; eram antes complementares.

Eu sei, parece básico. Eu sei, alguém deveria ter dito a eles que a responsabilidade é algo que diz respeito a todos. Eu sei, não é matéria do meu curso. Mas está aí nos jornais, muita gente não sabe. E essas pessoas, em algum lugar eles estudaram, e a ninguém foi dito: é sua responsabilidade.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

É só um curso

O programa dizia que o curso seria sobre a questão da diferença em nossa sociedade, sobre como as construimos e as vemos, como as aceitamos ou rejeitamos. Dizia também que os alunos teriam que investigar em seu próprio cotidiano quem eram e como viviam os diferentes. No site, eu perguntava o que esperavam do curso, e a adesão a minha questão foi brutal: todos tinham o que dizer. Um aluno disse que o curso o faria refletir sobre como lidava com a diferença e o faria a partir disso uma pessoa melhor.

Na aula, era o momento de botar os pingos nos is. Disse que tinha ficado contente com as expectativas, respondi dúvidas, esclareci interpretações, enfim, botei todos no mesmo barco. Emendei: tem gente que espera que o curso o faça uma pessoa melhor; baixem a bola, isso aqui é só um curso, só vamos aprender algumas coisas, fazer o trabalho e pronto. É um curso.

Às vezes eu mesma esqueço isso; é só um curso, uma porção de textos lidos e escritos, notas e faltas, aprovado e reprovado, até à vista.

Fico olhando para minha tela, de onde podem surgir trabalhos e questões pelo site, esperando alguma coisa a mais. Os alunos deixam tudo para a última hora, sempre, então no limite do prazo que eu mesma dei a eles começo a ficar apreensiva: e se ninguém fizer os trabalhos? E se eu não tiver nada para ler? E se eles não tiverem feito os benditos exercícios que desenho com tanto cuidado: “Passem um dia observando em seu cotidiano tudo o que diga respeito de um modo ou outro com a globalização.”

Os trabalhos vêm em jorros, claro, nas últimas horas do prazo. Com temas diferentes e repetidos, com português cuidado ou de internet, com vozes pessoais ou chavões, um atrás do outro, pedindo comentários mesmo que depois reclamem, engraçados, tocantes, observadores, debochados. Sempre vêm, até agora. Sempre têm vindo. Leio, dou notas, eles reclamam como num curso, e nesse ato de dar notas e fazer reclamações estamos reafirmando, é apenas um curso, fiz isso pois é meu trabalho, fiz o tal passeio pois preciso do diploma. Eu não poderia dizer que quero que eles vejam o mundo e me contem o que viram, afinal adoro ouvir histórias, poderia?

É só um curso. Tenho que ensinar uns textos e dar notas para quem aprendeu. Terminamos o curso, uns aliviados que era só um curso, outros pessoas melhores, e a maioria um pouco na dúvida, era só um curso? Era, era só um curso.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Incompletude

De um aluno: "Meu sentimento de formando é que necessito agora entrar em uma faculdade."

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Uma professora excelente!

Uma aluna que reprovei por plágio está me dando um certo trabalho, mas não é que os colegas até que aprovaram minha postura inflexível, dizendo até que hoje, o que os alunos mais têm falta, é de uma autoridade firme e presente? É o que procuro ser, essa autoridade liberal nas idéias mas rígida nos princípios, onde discordar de mim é desejado, mas respeitar as regras obrigatório. Com a liberdade, quero que sintam o peso da responsabilidade, da decisão, que tenham que encarar as consequências dos atos, o que num país cheio de carimbos e anistias, convenhamos, não é pouco. Onde pouco fazemos sem permissão, mas sobre o que fazemos nenhuma responsabilidade temos... Com as regras, quero deixar claro minha visão sobre o que é certo e o que é errado. Plágio é errado. Trabalhar é certo. Respeitar opiniões diferentes é certo. Aceitar opiniões sem refletir, só porque veio do fulano ou cicrano, é errado. E assim por diante.

Nunca tentei nem construir nem destruir nenhum país, então a comparação talvez não caiba. Mas gostei do que essa professora disse outro dia no jornal: 'She said that she is looking forward to getting back into the classroom at Stanford, where she hopes to interact with students, to challenge them, to hear them out and perhaps to teach them a thing or two about what it’s like to be in the driver’s seat when a national-security crisis explodes.
“I would do a simulation with students, where they are given a problem, some hot spot in the world,” she said. “And over a week they’d have to be the national security adviser solving those problems.”
“All of a sudden,” she said, “it doesn’t look so easy.”'

Modestamente, não tenho a experiência de uma secretária de Estado para dizer aos alunos que não é lá muito fácil. Menos modestamente, sei que ter responsabilidade sobre o que fazemos não é lá muito fácil. A cada dia, na sala de aula, às vezes até deixando a máscara cair e revelando dúvidas e indecisões, procuro dizer aos alunos que não é lá muito fácil, na esperança perene dos bons professores, de que outros façam as coisas melhor do que nós mesmos pudemos fazer.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Regras

Ninguém leu os textos, então a discussão propriamente dita ficou para os últimos 30 minutos da aula, depois que eu já os tivesse inteirado do assunto. Mas no início da aula, quando eu apenas dava avisos, procurava horários alternativos para uma aula, prometia um ponto extra para quem fizesse um exercício mais aprofundado, aí uma sede insaciável de discutir regras aparecia. Por que?
Não sei. A parte mais importante de meu trabalho é identificar o que chamo de nós do aprendizado: aquelas barreiras culturais que impedem um grupo de alunos de seguir adiante em sua busca pelo conhecimento. Qual a barreira? Como a detonar? Como encorajar os alunos a ultrapassá-la depois da explosão? É trabalho duro, trabalho de general corajoso que enfrenta campo minado para mostrar o caminho mais seguro.
Eu não sei exatamente como explodir a barreira, mas acho que já a identifiquei: a obsessão pelas regras. Um ponto a mais para alguém que vai fazer a observação em S. Paulo, e não no Interior? Como assim? E meus direitos? Minha garantia que ninguém vai sair na frente na corrida da vida apenas porque decidiu fazer algo além do mínimo necessário? Vamos discutir as regras. A observação em si ficará em segundo plano. Se ela será enriquecida pela diversidade de perspectivas, ou se o ponto a mais até me servirá de estímulo para fazer um trabalho melhor, não importa. As regras.
Cheguei tarde, não participei da aula, intimidei a professora exigindo minha presença, mas tenho os meus direitos. Quero a justiça de não ser prejudicado por não vir à aula ou por cometer plágio. É isso que se debate, com seriedade e empenho. Os desafios enfrentados pelo indivíduo diante da globalização, tema do meu curso, viram até uma brincadeira, uma coisa divertida e leve, eu falo de minhas sobrinhas que fazem parte do fenômeno Harry Potter, e depois digo que na segunda parte do curso vamos discutir a censura do YouTube, vocês sabem, a Cicarelli, e tudo fica leve e interessante, não chegamos a debater nada.
As regras nos fazem ranger o dentes.
É por elas que nos debatemos, nós, talvez, brasileiros? nós funcionários públicos?
Nós incertos quanto a elas, quanto ao nosso dever de cumpri-las, quanto à nossa obrigação constitucional de burlá-las. Nós um pouco Marcola, como o aluno que me intimidou, à noite, cansada, estremeci por dentro, cedi. Nós um pouco Gabeira, indignados, errados, derrotados nos nossos sonhos errados e depois novamente nos sonhos certos. Nós Genoíno, indefinido, escondido, sem orgulho dos erros mas sem nada que pareça um arrependimento tampouco. Nós Zélia, pioneira, que abriu as portas para a entrada das mulheres na desonestidade pública, quando antes estávamos confinadas, nessa área, à esfera privada. Nós Delcídio, ambíguo, nós Serraglio, cumprindo o papel de modo correto, sem desvios, sem esperança tampouco.
Esse embate com as regras parece significar muito. Que regras? Valem para quem? O que significam? Para que cumprir, e para que ignorar? Elas nos ajudam a caminhar, ou vamos construir nosso mundo como se elas fossem, como se elas, e não nossos verdadeiros problemas, fossem a barreira a ser destruída?

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Um pequeno mundo

Às vezes também entramos nós numa sala com vontade de escutar e aprender. E como para nossos alunos, não é apenas a matéria apresentada que nos atrai.

Então entrei na sala onde iriam discutir a contribuição da escola de Columbia à sociologia. Era a segunda palestra do Professor Katz que eu via, então já parecia bajulação. Que parecesse; um pouco era mesmo, e a bajulação era uma boa desculpa para meu verdadeiro interesse, a mente daquele velho judeu que continuava a pensar sobre o mundo.

Então foi em Columbia que se reuniram os refugiados alemães, e passaram a fazer aqueles estudos sobre mídia. Não que se interessassem pela mídia, apenas pelo modo como as pessoas tomam decisão. Coca ou pepsi, ABC ou NBC, não importava. Mas como as pessoas decidem, quem influencia quem, o que fazem com o que lêem ou escutam? Perguntas perenes. Criaram um centro para captar recursos das grandes empresas, uma precursora de nossas Fipes. E depois colocavam os alunos de pós em empregos nos departamentos de pesquisa dessas mesmas empresas, quem influencia quem?

Anos 50, grandes progressos.

Mandaram o Adorno pesquisar a música de rádio. Mas, disse o Katz, ele não gostava do rádio, achava que não se ouvia bem nos aparelhos. E não gostava das músicas, deviam tocar Schoenberg! Então não deu certo, e essa foi a briga entre Adorno e Lazarfeld. Aí o palestrante mais novo disse que a cooperação não foi tão desastrosa, e que Adorno ensinou, de volta a Frankfurt, as técnicas de pesquisa aprendidas em Columbia.

Mas isso não era acurado, de acordo com um velho alemão sentado atrás de mim que levantou a mão e disse: “Professor Adorno não ensinou técnicas de pesquisa em Frankfurt; apenas seus assistentes o fizeram, pois o Instituto se preocupava com a capacidade de seus alunos de encontrar bons empregos.”

Recado dado, informação corrigida, missão cumprida. A fotografia de um geração que, por escolha ou não, construiu seu pequeno mundo, onde se podia brigar por gostar de Schoenberg e sempre haveria espaço para levantar a mão e dizer a verdade, seu pequeno mundo espalhado pelos quatro cantos do globo.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

Um professor se vai

Morreu hoje um professor meu, que me deu aulas de psicanalise e filosofia nos anos 80, la na cinemateca em pinheiros. Deu tambem umas outras disciplinas que eu nao sei o nome, daquelas que acabam sendo as mais importantes. Nao e meu primeiro professor que morre, cuja perda me faz ser um pouco menor, um pouco maior.

Ele nao estando aqui, tenho eu alguma obrigacao adicional, algo que eu tenho que incluir agora nos programas?

Vontade de fugir de suas aulas, vontade de nao saber o que e que tem no ovo da serpente. Aula ruim.

Aula boa: Sonata de Outono, a filha esperando o intervalo do ensaio de piano como eu esperava os intervalos das aulas particulares. Bom se ver retratada, bom poder se enxergar, de longe, aprender o que e cinema.

Muitas, mas muitas aulas. Sair rindo de uma exibicao de Persona em Nova York, rindo um pouco desvairada, sem saber por que.

Sair desconcertada de uma producao para a televisao sobre um casal idoso e amargo. Demorar 20 anos para compreender o relogio sem ponteiros. Aula dificil.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Férias

O semestre já acabou há um tempo. Ficou na minha cabeça a frase de um garoto citada num dos trabalhos. A situação era essa: Meus alunos bolaram um teatro para uma turma, para despertar os garotos para a importância do Português, e relataram a experiência no trabalho. Os garotos, que achavam gramática um saco, adoraram o teatro. Ao final, um garoto perguntou ao grupo: "posso ficar com o papel?"

Achei tão bonito isso, "posso ficar com o papel?" O garoto descobria naquele exercício a importância do texto, o significado da escrita.

Mas são férias, quem passou, passou. Quem permanece no site são os reprovados, pedindo prazos, apontando injustiças. "Eu não venho nas aulas, não faço os exercícios, escrevo o trabalho de qualquer jeito e você ainda me reprova? Francamente!" Ser professor é um pouco isso, quem dá certo, voa. Te deixa algumas idéias e tchau.

sábado, 7 de julho de 2007

Conversa com o professor

"Sou eu, a Heloisa." Eu tinha ligado na hora combinada, para que ele me desse dicas num artigo acadêmico.

"Heloisa, meu deus, que coisa mais incrível, eu nunca me acostumo, mundos diferentes conectados num instante!"

"Eu estar ligando para os Estados Unidos não é tanta coisa pra mim, minha família hoje... é americana."

"Mesmo assim, semana que vem estarei na Europa, e acabei de chegar de uma visita a um professor meu, muito idoso, que mora aqui perto..." Não era tanto a distância, então. Era o tempo que se comprimia naquele telefonema.

Falei de minha viagem a Nova York em agosto, contei como era a estrutura do artigo, falei dos projetos, falei da greve. Meu inglês enferrujado, atropelando concordâncias e tropeçando em palavras.

"Quem entrou em greve?"

"Professores, alunos e funcionários." Como assim, todos?, ele deve ter pensado. Se estão todos de acordo, por que não mudam juntos as coisas?

"A greve era pelo quê?"

"Por um decreto" (decreto em inglês soa arcaico, será que é outra palavra?) "do governador que pedia que as contas fossem apresentadas diariamente, e não mensalmente, que foi aprovado em janeiro e que foi ganhando importância com a mobilização dos sindicatos." Sindicato é union, isso eu sei, é union.

Contando isso me perguntei afinal para que a apresentação diária. Um bom relatório anual, na verdade, seria suficiente, com o desempenho de cada faculdade, de cada curso. Quanto se gastou? Quantos se formaram? Os formandos de 2002, estão bem colocados? Quantos professores foram contratados? Quantos estrangeiros buscaram nossa instituição? Um bom relatório anual, publicado na internet, prestando contas.

Continuei: "Aí os alunos da USP invadiram a reitoria, e depois os da Unesp invadiram a sala do diretor, você sabe, uma sala um pouco maior que a minha, e também a cafeteria, não, não é cafeteria." Como se fala copa? "Invadiram a cozinha! Isso, a pequena cozinha onde se faz café para os professores, invadiram. - E aí chamaram a polícia. Isso..."

"Umh?"

"Isso faz sentido?"

"Bem, não. Não faz muito. Mas na universidade essas lutas não fazem sentido sempre. Você estava durante o nosso movimento?"

"A greve de fome?"

"É, também era sobre nada."

"O pior, o pior é que ninguém relaciona a greve dos professores com a invasão e a chamada da polícia. Ninguém."

Agora estávamos num campo conhecido, das coisas óbvias mas tão difíceis de compreender que era o nosso objeto de estudo. Agora, talvez, contando a greve de modo atropelado para alguém tão longe dela, eu pudesse dar-lhe um sentido. Claro, a greve já acabou. Professores retomam brigas interrompidas a respeito da grade horária e alunos rebeldes buscam emprego no departamento de marketing da Coca-Cola. Mas eu encontrava um sentido para meu incômodo e minha vergonha, mesmo que fosse um sentido patético, como disse Scheinkman na Folha.

Não sei se meu professor continua aprendendo algo quando vai visitar seus mestres idosos. Eu penso que continuo aprendendo algo de mim e do que se passa à minha volta - não com suas palestras, mas com sua escuta e com meus próprios esforços em encontrar a palavra certa, a história que faça sentido.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

A metamorfose

"A professora é hippie." Ela não perguntou nem acusou. Apenas constatou, olhando para minha cara, como se tivesse me visto do avesso. Mimada, rica e preguiçosa, eu não conseguia detestá-la como merecia. "A professora é hippie", ela disse, e uma coisa que eu nem era acabei sendo.

"Hoje só faltou o incenso, hein, professora?", me perguntou um aluno mais simpático uns anos depois, mas aí eu já tinha me conformado com a coisa.

Entre uma frase e outra fui testando minhas hippices, aula no jardim, bolinha de tenis, exercício do olhar e coisa e tal. Num curso de psicologia para administradores públicos, propus à classe estudar a psicologia humana a partir de quem realmente entendia, e não de uns cientistas metidos que apenas repetiam os primeiros em textos ruins. Homero, Shakespeare, Schnitzer, os autores de Genesis, Gogol, esses caras é que entendiam dos dramas humanos. Não iríamos estudar os textos, as técnicas narrativas, mas sim os personagens retratados. Ao final do curso um aluno disse que o que mais o impressionou eram as semelhanças, os mesmos sonhos, os mesmos medos, o mesmo ser humano. Sim, a solidão da Senhorita Else, a liderança desastrosa de Ulisses, o amadurecimento de Telêmaco, a rivalidade entre irmãos, o oportunismo do falso inspetor, tudo isso era de ontem e de hoje, li nos trabalhos dos alunos.

E a metamorfose? Pedi aos alunos que fizessem um teatrinho na aula, em grupos, jogo rápido, escolher uma cena e encená-la para a classe. Um grupo - futuros administradores públicos, lembrem-se - fez a primeiríssima cena, quando o monstruoso inseto tenta erger-se como gente mas consegue apenas balançar as patinhas nervosamente no ar. O aluno deitado na mesa do professor, e víamos as patas, não as pernas, ríamos todos e, talvez, angustiávamo-nos também.

Quase um século antes Kafka lia a metamorfose para os amigos em algum restaurante de Praga, fazendo-os rir. Depois o texto ficou sério com todos os pretenciosos comentários dos críticos, que às vezes detonam o texto e outras vezes valorizam a crítica. Mas naquela sala de aula no interior de São Paulo minha hippice trouxe a metamorfose de volta, nos fazendo rir de nossas angústias modernas.

Sala de professores

A sala de professores sempre me causou asfixia. "A Heloisa entra muda e sai calada", ouvi de um colega uma vez, reproduzindo o que o chefe de departamento pensava a meu respeito. Gosto de falar de alunos, discutir métodos de ensino, comentar notícias do dia, enfim, do que se faz em salas de professores. Mas a perspectiva de ter que entrar numa sala repleta de gente, "tudo bem? tudo bom?" me afeta a respiração e os batimentos cardíacos. A maior diferença entre ensino público e privado é essa: no ensino público temos uma sala própria.

O final dos cursos é sempre um momento de expectativa para mim. Que os alunos tenham dito que gostaram do curso ou não é menos importante do que a qualidade de seus trabalhos finais. Trabalhos bons me deixam satisfeita; trabalhos fracos esgarçam qualquer elogio. Como virão os trabalhos? Nas apresentações, eles revelarão coisas novas? Saberei fazer críticas que apontem novos caminhos?

"Ah, espero que passe logo a próxima hora."
"Você tem os dois horários?"
"Não, mas é prova. Olha, prefiro aula que prova. Prova, a gente olha no relógio, depois olha denovo e não passou um minuto. É fogo."

Tiro os olhos de meu Péricles, de Atenas, onde me distraio até 5 minutos antes da aula, quando vou esperar na porta a saída do outro professor. Olho para a professora, e pergunto silenciosamente por que ela dá prova, já que é tão chato assim. Volto ao Péricles, à minha mudez e às minhas expectativas até que a aula comece.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

O aluno sucinto

A imagem que tenho de mim mesma é a de uma professora que não distingue negros e brancos; alunos vindos de meios privilegiados e humildes, homossexuais e heterossexuais; esquerdistas e liberais. Uma vez uma aluna revelou que tinha síndrome de Tourette, uma condição que a levava a movimentar as mãos repetidamente e, de vez em quando, a sair da classe sem razão. Fiquei surpresa: achei que aquilo era tudo parte de sua individualidade, não imaginava que era uma síndrome, uma diferença, uma problema.

Mas a imagem que a gente tem de si mesma não corresponde completamente à realidade, e há um grupo que sempre trato de modo inóspito: os homens que escrevem sucintamente. Uma vez pedi que um deles reelaborasse o resumo que tinha feito dos textos dos colegas. Ele disse que não havia mais nada a ser dito. Eu pedi que me desse então os artigos, e ele respondeu que já tinha jogado no lixo. A classe riu, ele se constrangeu e depois, pelo site, pediu uma retratação. Eu nunca teria jogado no lixo um texto: sempre poderia haver um novo olhar, uma nova interpretação. Para ele, compreendo agora, as idéias foram extraídas, publicadas, e pronto: lixo.

Um outro aluno eu repeti por ter, numa substitutiva, condensado a tal ponto as idéias de Arendt que me pareceu decoreba. No ano seguinte estava lá ele, acabrunhado, no fundo da classe. Já parcialmente ciente do meu erro, eu interrompia o que dizia para cumprimentá-lo, quando ele chegava no meio da aula, e perguntava se estava tudo bem. Num exercício pedi aos alunos que, em duplas, identificassem pontos fortes e fracos para que pudessem se ajudar mutuamente a enfrentrar os desafios do curso. Sugeri ao colega do Guilherme que o motivasse, pois fazer o mesmo curso duas vezes não era mole. Deu certo, o colega me contou, e ambos acabaram trabalhando juntos. Enfim, cheguei perto do pedido de desculpas, por uma falha a respeito da qual eu não tinha clareza.

Os trabalhos finais chegaram, todos muito bons. O de Guilherme era excelente. Objetivo, sem ornamentos, gramática clara e precisa. Falava dos catadores de lixo, de exclusão, de trabalho duro. Mas sem pieguices nem grandiloquências. Simplesmente contava ao leitor como é catar lixo, separar lixo e viver do lixo na cidade de Araraquara.

O curso tratava da diferença. E eu passei a respeitar essa classe de gente que eu antes queria consertar: os homens que escrevem sucintamente.

domingo, 24 de junho de 2007

Um programa extenso

"Professor, nós vamos visitar uma obra?", perguntou meu pai, aluno da FAU nos anos 50, ao professor de Técnicas de Construção.

"Não, nós temos um programa muito extenso para cumprir."

sábado, 23 de junho de 2007

Era uma aula muito engraçada

Fazendo as contas, ali no lápis, é um cheque de 270 mil reais todo ano na mão de cada professor da universidade onde trabalho. Um cheque assinado: contribuinte paulista. Com esse cheque eu compro computadores, pago a luz, contrato assistentes, tiro xerox e até compro livros e pago meu salário. Dou bolsas para meus alunos mais criativos. Teve um ano que levei todos numa viagem pelo rio São Francisco. Tenho que deixar uma reserva para minha aposentadoria e a de meus funcionários…

Devaneio. O cheque se esvai, declaro ao fisco 30 mil, só isso, atraso condomínios. Os outros 240 mil, onde? O governador, filho de um comerciante do Mercado Municipal, provavelmente se fez a mesma pergunta e baixou os decretos incômodos. Eu chego à universidade em cima da hora, pois quero ir direto às aulas sem passar pelo departamento que se reunirá em conselho para discutir a grave crise. Cadeiras impedem a entrada às salas, alunas na porta do prédio, aula nos bancos de concreto em frente ao espelho d’água modernista.

Peço para não abrirem cadernos e rio quando toca um celular: boa idéia, conversem no celular, se alguém perguntar não estamos em aula, apenas discutimos a situação da educação no Brasil. Os alunos “do movimento” nos observam, mas respeitei o prédio invadido e eles respeitam minha aula secreta. Os professores me olham desconfiados, sou clandestina, uma professora, dentro de uma universidade, assim, dando aulas, que petulância! Deixo as alunas discutindo seus trabalhos finais entre si e vou à reunião. Sugiro a construção de uma agenda de debates sobre questões substantivas que afetam a universidade, me ignoram, trocam farpas prioritárias, peço licença, volto ao concreto.

O sol vai se pondo, talvez ali seja melhor mesmo para ter aulas. Mas no dia seguinte preferimos a sombra de uma árvore, bancos de concreto ao redor de uma mesa no gramado. Há mais alunos. Há mais idéias. Há mais projetos. A narrativa, a crítica do professor, a linguística, a cultura brasileira, a gramática viva. Tenho uma idéia: trabalhem com roteiros de filmes e novelas, os alunos vão adorar. Especulamos por que textos mais expressivos tem melhor gramática. Os passarinhos nos sobrevoam fazendo um barulho infernal, eu olho severa para cima e algumas alunas riem como se eu fosse lhes mandar “fechar o bico”.

“Eu articulo um movimento”, diz Caetano. Já nós vemos o movimento chegar com a bateria ensurdecedora e decidimos por um intervalo, nos reencontrando em minha sala em meia hora. Continuamos as apresentações dos trabalhos finais, e fechamos com uma breve avaliação do curso, que inclui vozes críticas depois de meu convite expresso, estranha democracia. Sensação de dever cumprido. Em casa, no site, as avaliações do curso por escrito: gostei do espaço para opiniões divergentes, pude refletir sobre minhas práticas, articulei teoria e realidade, no site vimos os trabalhos dos colegas. Parece que tenho um método, as avaliações se repetem a cada semestre, um Paulo Freire do ensino superior.

Na saída ainda encontro um ex-aluno, ocupando ludicamente a copa da faculdade, pode vir tomar café professora. Digo-lhe que a ocupação não favorece o debate aberto, ele conta que vão organizar uma série de debates sobre a universidade. Traga pessoas de fora, opiniões divergentes, o debate aqui está viciado, eu digo. “Opiniões contrárias”, ele repete pensativo, olhando para cima, imaginando esse debate onde não pensam todos igual. “Você se disporia, professora?”, me pergunta animado. Dever cumprido.

270 mil, 30 mil, computador, concreto, sala de aula, banco de jardim, greve, movimento, já não sei mais o que precisa para dar um bom curso. Precisa de tudo, precisa de nada. Por que os alunos vieram? Por que fizeram os trabalhos? Por que eu me esgueirei pelo campus para dar aulas? Era aula mesmo, ou, de fato, apenas discutíamos a situação do ensino no Brasil?

sexta-feira, 22 de junho de 2007

A feira do Pacaembu

Colocava algumas definições na lousa naquela aula excepcionalmente tranquila para uma turma de economia que me recordava muito das bagunças que fiz ali ao lado, no Pequeno Príncipe, uns poucos vinte anos antes. O PIB é a soma do valor de todas as coisas que um país produz num ano. O volume é estimado pelo IBGE, toda estatística é uma aproximação, mas o valor do IBGE é o melhor chute possível, podem confiar.

A classe começou um debate, desta vez não para saber onde iam passar o fim-de-semana. Debate desses de aluno, um arriscando uma opinião, outro rebatendo, até que sobrou uma pergunta pra mim: “Mas professora, a quantidade a gente entendeu, mas o preço quem define também é o IBGE?”

“Isso, quem define o preço?”

Bem… é… o preço quem define é o mercado, né?

Talvez eu tenha dito isso, talvez outra coisa, não lembro. Era a primeira pergunta que me faziam, pergunta mesmo, quando o aluno olha para você e quer saber alguma coisa, e deposita em você a esperança de que o esclareça.

Fui para a casa com a pergunta na cabeça, pergunta grande, de botar pra funcionar tantas mentes brilhantes, tantos Ricardos. Mas os alunos não tinham perguntado como o Ricardo achava que os preços eram determinados: a pergunta era para mim.

Os alunos, eu sabia, viviam bem, e viver bem em São Paulo significa ter um pequeno séquito ajudando você e seus pais a tocar o dia-a-dia. Em Los Angeles, há muitos anos, me espantei que naquelas casas luxuosas quem cuida da cozinha é a milionária. Meus alunos, mesmo nem tão milionários assim, talvez nunca tivessem checado se tinham troco antes de entrar num ônibus. E talvez, pensei, já com más intenções, nunca tivessem ido na feira…

A feira… As frutas e verduras, as barracas e gritos, os pacotes e o dinheiro. O mercado, o núcleo das cidades, o herdeiro das feiras medievais de Braudel, o lugar onde minha mãe buscava legumes e peixes frescos para a minha infância, a feira do Pacaembu. Na próxima aula, disse, dividam-se em dois grupos e cada grupo, com apenas 35 reais, deverá trazer a maior quantidade de produtos da feira possível. Os integrantes do grupo que ganhar levam 1 ponto inteiro na média.

Chegaram cheios de expectativa, caras de criança. Me dei por satisfeita aí mesmo, pois eu não conseguia fazer absolutamente nada com aquela classe. Uma colega me contou que um dia saiu da sala em protesto e a bagunça era tamanha que ninguém notou. Também temi que eles acabassem usando mais dinheiro que o determinado, mas que nada. Aceitaram a regra, a primeira regra aceita no curso. E foram à feira.

Os meninos caíram nas graças de uma feirante, que lhes deu todas as dicas possíveis. Eu os vi comendo melancia e batendo papo com o dono de uma outra barraca – a casca gigantesca eles iam usar como invólucro para toda uma gama de coisas, me explicaram. Não só os feirantes, até eu tinha virado gente. Frutas caras, com nomes difíceis? Ah, não, o dinheiro não vai dar. As meninas, além das frutas, queriam cascas de coco e flores para enfeitar o arranjo. O coco tudo bem, é resto, mas e as flores? Sorriram, mas sorriram tanto, que acabaram ganhando.

Levaram tudo nos braços, até a sala, onde montaram, cortaram, ajeitaram, e chamaram o diretor para ver, mas não sei se ele alcançou a idéia, envolvido em sérios projetos de emprego da criatividade nos negócios. Eu ria. Fiquei na dúvida sobre o ponto, meninos ou meninas, mas eles exigiram o ponto para a classe toda, que eu dei, não tinha gostado das frutas? As secretárias também gostaram, ficaram com as flores, talvez esse seja meu ambiente intelectual.

Não falei nada, nem de Braudel, nem de Appadurai, nem de Ricardo: a vida das mercadorias eles trouxeram da nossa feira do Pacaembu.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

A classe vazia

Campus lindo, ensolarado, frio, morto. Devido à greve, meus alunos não vieram, como haviam me alertado pelo site do curso. Vim por princípio, mas por princípio cada vez mais difícil de definir, vontade de ficar em casa curtindo a sinusite e embaralhando programas de TV na cabeça.

A greve das três categorias – professores, alunos e funcionários – foi decretada na semana passada, mas sinto que estamos em greve desde 5 de março, quando o calendário escolar indica: início das aulas. Aula para mim é espaço de troca de vivências e saberes, descobertas coletivas, conflitos e consensos, produção de textos de que nos orgulhamos.

E até agora, nessa classe – uma longa greve. Nenhum momento onde pude ver nos rostos dos alunos “a ficha cair”. Quando isso acontece o professor atento pode enxergar a ficha, escutar o som, sentir o orelhão tremer e finalmente ganhar forças para a próxima turma.

Tenho alunos dedicados, e muitos deles devem estar aproveitando a interrupção das aulas para terminar seus trabalhos finais. E eu… bem, eu dei minhas aulas, coloquei os textos no xerox, propus exercícios. Mas não houve aprendizado ou, antes, houve uma declarada resistência a ele, e me pergunto se com ela colaborei.

Releio mentalmente o psicanalista inglês Wilfred Bion, que estudou as vontades tácitas dos grupos, e penso que a classe vazia, com as carteiras alinhadas para ninguém e o projetor recém-instalado, mudo no teto, possa ser nosso melhor retrato. Sinto que fundamentalmente eles não querem aprender comigo e não há muito o que eu possa fazer a respeito. Aos poucos perco eu a vontade de falar.

Fazer as vontades da classe é sempre o melhor jeito de perdê-la, aprendi com o tempo. “Indique menos textos, mude a data dos exercícios, dê aulas expositivas, traga autores nacionais.” Quando os alunos se queixam de alguma coisa, é geralmente algo muito mais profundo em você que eles não toleram, e é bom que eles continuem pensando que é o texto em inglês que incomoda, e não você com sua estúpida cobrança por pensamentos próprios.

Explicações? Vastas. Currículos rígidos, escolhas precoces, teorias desconectadas da realidade e diplomas de utilidade duvidosa que a um só tempo asseguram aos alunos a inutilidade desse estudo e impedem que eles busquem novos caminhos intelectuais. Mas uma classe vazia é uma classe vazia, e não há sociologia que dê conta.

Só que um sociólogo não resiste à tentação generalizadora, e imagino que em outras classes, em outros campi, também esse desejo de não aprender – se fosse desejo de desaprender não seria mal, eu mesma fiz vários cursos no doutorado para desaprender a USP – esse desejo de não aprender se instaurou.

Essa vontade de não escutar, de não questionar, de enquadrar apressadamente tudo o que possa surgir de novo, esvaziando-o de sentido, só na minha aula? Talvez muitos nem sofram com isso, com a perturbadora ausência de comunicação entre pessoas vivas, juntas.

Greve, greve, greve. Uma greve profunda, das entranhas da universidade, de seu saber e saber mais, com pretextos anti-governamentais e momentos poéticos como a escalada à Torre do Relógio, que me encheu de orgulho. E que devia ser parte do ritual de entrada nas nossas universidades: vê-las de cima, enfincadas em suas cidades, os carros e caminhões passando em volta!

(escrito em maio de 2007; abaixo, professor da USP na Torre do Relógio)