segunda-feira, 25 de junho de 2007

O aluno sucinto

A imagem que tenho de mim mesma é a de uma professora que não distingue negros e brancos; alunos vindos de meios privilegiados e humildes, homossexuais e heterossexuais; esquerdistas e liberais. Uma vez uma aluna revelou que tinha síndrome de Tourette, uma condição que a levava a movimentar as mãos repetidamente e, de vez em quando, a sair da classe sem razão. Fiquei surpresa: achei que aquilo era tudo parte de sua individualidade, não imaginava que era uma síndrome, uma diferença, uma problema.

Mas a imagem que a gente tem de si mesma não corresponde completamente à realidade, e há um grupo que sempre trato de modo inóspito: os homens que escrevem sucintamente. Uma vez pedi que um deles reelaborasse o resumo que tinha feito dos textos dos colegas. Ele disse que não havia mais nada a ser dito. Eu pedi que me desse então os artigos, e ele respondeu que já tinha jogado no lixo. A classe riu, ele se constrangeu e depois, pelo site, pediu uma retratação. Eu nunca teria jogado no lixo um texto: sempre poderia haver um novo olhar, uma nova interpretação. Para ele, compreendo agora, as idéias foram extraídas, publicadas, e pronto: lixo.

Um outro aluno eu repeti por ter, numa substitutiva, condensado a tal ponto as idéias de Arendt que me pareceu decoreba. No ano seguinte estava lá ele, acabrunhado, no fundo da classe. Já parcialmente ciente do meu erro, eu interrompia o que dizia para cumprimentá-lo, quando ele chegava no meio da aula, e perguntava se estava tudo bem. Num exercício pedi aos alunos que, em duplas, identificassem pontos fortes e fracos para que pudessem se ajudar mutuamente a enfrentrar os desafios do curso. Sugeri ao colega do Guilherme que o motivasse, pois fazer o mesmo curso duas vezes não era mole. Deu certo, o colega me contou, e ambos acabaram trabalhando juntos. Enfim, cheguei perto do pedido de desculpas, por uma falha a respeito da qual eu não tinha clareza.

Os trabalhos finais chegaram, todos muito bons. O de Guilherme era excelente. Objetivo, sem ornamentos, gramática clara e precisa. Falava dos catadores de lixo, de exclusão, de trabalho duro. Mas sem pieguices nem grandiloquências. Simplesmente contava ao leitor como é catar lixo, separar lixo e viver do lixo na cidade de Araraquara.

O curso tratava da diferença. E eu passei a respeitar essa classe de gente que eu antes queria consertar: os homens que escrevem sucintamente.

domingo, 24 de junho de 2007

Um programa extenso

"Professor, nós vamos visitar uma obra?", perguntou meu pai, aluno da FAU nos anos 50, ao professor de Técnicas de Construção.

"Não, nós temos um programa muito extenso para cumprir."

sábado, 23 de junho de 2007

Era uma aula muito engraçada

Fazendo as contas, ali no lápis, é um cheque de 270 mil reais todo ano na mão de cada professor da universidade onde trabalho. Um cheque assinado: contribuinte paulista. Com esse cheque eu compro computadores, pago a luz, contrato assistentes, tiro xerox e até compro livros e pago meu salário. Dou bolsas para meus alunos mais criativos. Teve um ano que levei todos numa viagem pelo rio São Francisco. Tenho que deixar uma reserva para minha aposentadoria e a de meus funcionários…

Devaneio. O cheque se esvai, declaro ao fisco 30 mil, só isso, atraso condomínios. Os outros 240 mil, onde? O governador, filho de um comerciante do Mercado Municipal, provavelmente se fez a mesma pergunta e baixou os decretos incômodos. Eu chego à universidade em cima da hora, pois quero ir direto às aulas sem passar pelo departamento que se reunirá em conselho para discutir a grave crise. Cadeiras impedem a entrada às salas, alunas na porta do prédio, aula nos bancos de concreto em frente ao espelho d’água modernista.

Peço para não abrirem cadernos e rio quando toca um celular: boa idéia, conversem no celular, se alguém perguntar não estamos em aula, apenas discutimos a situação da educação no Brasil. Os alunos “do movimento” nos observam, mas respeitei o prédio invadido e eles respeitam minha aula secreta. Os professores me olham desconfiados, sou clandestina, uma professora, dentro de uma universidade, assim, dando aulas, que petulância! Deixo as alunas discutindo seus trabalhos finais entre si e vou à reunião. Sugiro a construção de uma agenda de debates sobre questões substantivas que afetam a universidade, me ignoram, trocam farpas prioritárias, peço licença, volto ao concreto.

O sol vai se pondo, talvez ali seja melhor mesmo para ter aulas. Mas no dia seguinte preferimos a sombra de uma árvore, bancos de concreto ao redor de uma mesa no gramado. Há mais alunos. Há mais idéias. Há mais projetos. A narrativa, a crítica do professor, a linguística, a cultura brasileira, a gramática viva. Tenho uma idéia: trabalhem com roteiros de filmes e novelas, os alunos vão adorar. Especulamos por que textos mais expressivos tem melhor gramática. Os passarinhos nos sobrevoam fazendo um barulho infernal, eu olho severa para cima e algumas alunas riem como se eu fosse lhes mandar “fechar o bico”.

“Eu articulo um movimento”, diz Caetano. Já nós vemos o movimento chegar com a bateria ensurdecedora e decidimos por um intervalo, nos reencontrando em minha sala em meia hora. Continuamos as apresentações dos trabalhos finais, e fechamos com uma breve avaliação do curso, que inclui vozes críticas depois de meu convite expresso, estranha democracia. Sensação de dever cumprido. Em casa, no site, as avaliações do curso por escrito: gostei do espaço para opiniões divergentes, pude refletir sobre minhas práticas, articulei teoria e realidade, no site vimos os trabalhos dos colegas. Parece que tenho um método, as avaliações se repetem a cada semestre, um Paulo Freire do ensino superior.

Na saída ainda encontro um ex-aluno, ocupando ludicamente a copa da faculdade, pode vir tomar café professora. Digo-lhe que a ocupação não favorece o debate aberto, ele conta que vão organizar uma série de debates sobre a universidade. Traga pessoas de fora, opiniões divergentes, o debate aqui está viciado, eu digo. “Opiniões contrárias”, ele repete pensativo, olhando para cima, imaginando esse debate onde não pensam todos igual. “Você se disporia, professora?”, me pergunta animado. Dever cumprido.

270 mil, 30 mil, computador, concreto, sala de aula, banco de jardim, greve, movimento, já não sei mais o que precisa para dar um bom curso. Precisa de tudo, precisa de nada. Por que os alunos vieram? Por que fizeram os trabalhos? Por que eu me esgueirei pelo campus para dar aulas? Era aula mesmo, ou, de fato, apenas discutíamos a situação do ensino no Brasil?

sexta-feira, 22 de junho de 2007

A feira do Pacaembu

Colocava algumas definições na lousa naquela aula excepcionalmente tranquila para uma turma de economia que me recordava muito das bagunças que fiz ali ao lado, no Pequeno Príncipe, uns poucos vinte anos antes. O PIB é a soma do valor de todas as coisas que um país produz num ano. O volume é estimado pelo IBGE, toda estatística é uma aproximação, mas o valor do IBGE é o melhor chute possível, podem confiar.

A classe começou um debate, desta vez não para saber onde iam passar o fim-de-semana. Debate desses de aluno, um arriscando uma opinião, outro rebatendo, até que sobrou uma pergunta pra mim: “Mas professora, a quantidade a gente entendeu, mas o preço quem define também é o IBGE?”

“Isso, quem define o preço?”

Bem… é… o preço quem define é o mercado, né?

Talvez eu tenha dito isso, talvez outra coisa, não lembro. Era a primeira pergunta que me faziam, pergunta mesmo, quando o aluno olha para você e quer saber alguma coisa, e deposita em você a esperança de que o esclareça.

Fui para a casa com a pergunta na cabeça, pergunta grande, de botar pra funcionar tantas mentes brilhantes, tantos Ricardos. Mas os alunos não tinham perguntado como o Ricardo achava que os preços eram determinados: a pergunta era para mim.

Os alunos, eu sabia, viviam bem, e viver bem em São Paulo significa ter um pequeno séquito ajudando você e seus pais a tocar o dia-a-dia. Em Los Angeles, há muitos anos, me espantei que naquelas casas luxuosas quem cuida da cozinha é a milionária. Meus alunos, mesmo nem tão milionários assim, talvez nunca tivessem checado se tinham troco antes de entrar num ônibus. E talvez, pensei, já com más intenções, nunca tivessem ido na feira…

A feira… As frutas e verduras, as barracas e gritos, os pacotes e o dinheiro. O mercado, o núcleo das cidades, o herdeiro das feiras medievais de Braudel, o lugar onde minha mãe buscava legumes e peixes frescos para a minha infância, a feira do Pacaembu. Na próxima aula, disse, dividam-se em dois grupos e cada grupo, com apenas 35 reais, deverá trazer a maior quantidade de produtos da feira possível. Os integrantes do grupo que ganhar levam 1 ponto inteiro na média.

Chegaram cheios de expectativa, caras de criança. Me dei por satisfeita aí mesmo, pois eu não conseguia fazer absolutamente nada com aquela classe. Uma colega me contou que um dia saiu da sala em protesto e a bagunça era tamanha que ninguém notou. Também temi que eles acabassem usando mais dinheiro que o determinado, mas que nada. Aceitaram a regra, a primeira regra aceita no curso. E foram à feira.

Os meninos caíram nas graças de uma feirante, que lhes deu todas as dicas possíveis. Eu os vi comendo melancia e batendo papo com o dono de uma outra barraca – a casca gigantesca eles iam usar como invólucro para toda uma gama de coisas, me explicaram. Não só os feirantes, até eu tinha virado gente. Frutas caras, com nomes difíceis? Ah, não, o dinheiro não vai dar. As meninas, além das frutas, queriam cascas de coco e flores para enfeitar o arranjo. O coco tudo bem, é resto, mas e as flores? Sorriram, mas sorriram tanto, que acabaram ganhando.

Levaram tudo nos braços, até a sala, onde montaram, cortaram, ajeitaram, e chamaram o diretor para ver, mas não sei se ele alcançou a idéia, envolvido em sérios projetos de emprego da criatividade nos negócios. Eu ria. Fiquei na dúvida sobre o ponto, meninos ou meninas, mas eles exigiram o ponto para a classe toda, que eu dei, não tinha gostado das frutas? As secretárias também gostaram, ficaram com as flores, talvez esse seja meu ambiente intelectual.

Não falei nada, nem de Braudel, nem de Appadurai, nem de Ricardo: a vida das mercadorias eles trouxeram da nossa feira do Pacaembu.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

A classe vazia

Campus lindo, ensolarado, frio, morto. Devido à greve, meus alunos não vieram, como haviam me alertado pelo site do curso. Vim por princípio, mas por princípio cada vez mais difícil de definir, vontade de ficar em casa curtindo a sinusite e embaralhando programas de TV na cabeça.

A greve das três categorias – professores, alunos e funcionários – foi decretada na semana passada, mas sinto que estamos em greve desde 5 de março, quando o calendário escolar indica: início das aulas. Aula para mim é espaço de troca de vivências e saberes, descobertas coletivas, conflitos e consensos, produção de textos de que nos orgulhamos.

E até agora, nessa classe – uma longa greve. Nenhum momento onde pude ver nos rostos dos alunos “a ficha cair”. Quando isso acontece o professor atento pode enxergar a ficha, escutar o som, sentir o orelhão tremer e finalmente ganhar forças para a próxima turma.

Tenho alunos dedicados, e muitos deles devem estar aproveitando a interrupção das aulas para terminar seus trabalhos finais. E eu… bem, eu dei minhas aulas, coloquei os textos no xerox, propus exercícios. Mas não houve aprendizado ou, antes, houve uma declarada resistência a ele, e me pergunto se com ela colaborei.

Releio mentalmente o psicanalista inglês Wilfred Bion, que estudou as vontades tácitas dos grupos, e penso que a classe vazia, com as carteiras alinhadas para ninguém e o projetor recém-instalado, mudo no teto, possa ser nosso melhor retrato. Sinto que fundamentalmente eles não querem aprender comigo e não há muito o que eu possa fazer a respeito. Aos poucos perco eu a vontade de falar.

Fazer as vontades da classe é sempre o melhor jeito de perdê-la, aprendi com o tempo. “Indique menos textos, mude a data dos exercícios, dê aulas expositivas, traga autores nacionais.” Quando os alunos se queixam de alguma coisa, é geralmente algo muito mais profundo em você que eles não toleram, e é bom que eles continuem pensando que é o texto em inglês que incomoda, e não você com sua estúpida cobrança por pensamentos próprios.

Explicações? Vastas. Currículos rígidos, escolhas precoces, teorias desconectadas da realidade e diplomas de utilidade duvidosa que a um só tempo asseguram aos alunos a inutilidade desse estudo e impedem que eles busquem novos caminhos intelectuais. Mas uma classe vazia é uma classe vazia, e não há sociologia que dê conta.

Só que um sociólogo não resiste à tentação generalizadora, e imagino que em outras classes, em outros campi, também esse desejo de não aprender – se fosse desejo de desaprender não seria mal, eu mesma fiz vários cursos no doutorado para desaprender a USP – esse desejo de não aprender se instaurou.

Essa vontade de não escutar, de não questionar, de enquadrar apressadamente tudo o que possa surgir de novo, esvaziando-o de sentido, só na minha aula? Talvez muitos nem sofram com isso, com a perturbadora ausência de comunicação entre pessoas vivas, juntas.

Greve, greve, greve. Uma greve profunda, das entranhas da universidade, de seu saber e saber mais, com pretextos anti-governamentais e momentos poéticos como a escalada à Torre do Relógio, que me encheu de orgulho. E que devia ser parte do ritual de entrada nas nossas universidades: vê-las de cima, enfincadas em suas cidades, os carros e caminhões passando em volta!

(escrito em maio de 2007; abaixo, professor da USP na Torre do Relógio)