segunda-feira, 30 de julho de 2007

Um professor se vai

Morreu hoje um professor meu, que me deu aulas de psicanalise e filosofia nos anos 80, la na cinemateca em pinheiros. Deu tambem umas outras disciplinas que eu nao sei o nome, daquelas que acabam sendo as mais importantes. Nao e meu primeiro professor que morre, cuja perda me faz ser um pouco menor, um pouco maior.

Ele nao estando aqui, tenho eu alguma obrigacao adicional, algo que eu tenho que incluir agora nos programas?

Vontade de fugir de suas aulas, vontade de nao saber o que e que tem no ovo da serpente. Aula ruim.

Aula boa: Sonata de Outono, a filha esperando o intervalo do ensaio de piano como eu esperava os intervalos das aulas particulares. Bom se ver retratada, bom poder se enxergar, de longe, aprender o que e cinema.

Muitas, mas muitas aulas. Sair rindo de uma exibicao de Persona em Nova York, rindo um pouco desvairada, sem saber por que.

Sair desconcertada de uma producao para a televisao sobre um casal idoso e amargo. Demorar 20 anos para compreender o relogio sem ponteiros. Aula dificil.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Férias

O semestre já acabou há um tempo. Ficou na minha cabeça a frase de um garoto citada num dos trabalhos. A situação era essa: Meus alunos bolaram um teatro para uma turma, para despertar os garotos para a importância do Português, e relataram a experiência no trabalho. Os garotos, que achavam gramática um saco, adoraram o teatro. Ao final, um garoto perguntou ao grupo: "posso ficar com o papel?"

Achei tão bonito isso, "posso ficar com o papel?" O garoto descobria naquele exercício a importância do texto, o significado da escrita.

Mas são férias, quem passou, passou. Quem permanece no site são os reprovados, pedindo prazos, apontando injustiças. "Eu não venho nas aulas, não faço os exercícios, escrevo o trabalho de qualquer jeito e você ainda me reprova? Francamente!" Ser professor é um pouco isso, quem dá certo, voa. Te deixa algumas idéias e tchau.

sábado, 7 de julho de 2007

Conversa com o professor

"Sou eu, a Heloisa." Eu tinha ligado na hora combinada, para que ele me desse dicas num artigo acadêmico.

"Heloisa, meu deus, que coisa mais incrível, eu nunca me acostumo, mundos diferentes conectados num instante!"

"Eu estar ligando para os Estados Unidos não é tanta coisa pra mim, minha família hoje... é americana."

"Mesmo assim, semana que vem estarei na Europa, e acabei de chegar de uma visita a um professor meu, muito idoso, que mora aqui perto..." Não era tanto a distância, então. Era o tempo que se comprimia naquele telefonema.

Falei de minha viagem a Nova York em agosto, contei como era a estrutura do artigo, falei dos projetos, falei da greve. Meu inglês enferrujado, atropelando concordâncias e tropeçando em palavras.

"Quem entrou em greve?"

"Professores, alunos e funcionários." Como assim, todos?, ele deve ter pensado. Se estão todos de acordo, por que não mudam juntos as coisas?

"A greve era pelo quê?"

"Por um decreto" (decreto em inglês soa arcaico, será que é outra palavra?) "do governador que pedia que as contas fossem apresentadas diariamente, e não mensalmente, que foi aprovado em janeiro e que foi ganhando importância com a mobilização dos sindicatos." Sindicato é union, isso eu sei, é union.

Contando isso me perguntei afinal para que a apresentação diária. Um bom relatório anual, na verdade, seria suficiente, com o desempenho de cada faculdade, de cada curso. Quanto se gastou? Quantos se formaram? Os formandos de 2002, estão bem colocados? Quantos professores foram contratados? Quantos estrangeiros buscaram nossa instituição? Um bom relatório anual, publicado na internet, prestando contas.

Continuei: "Aí os alunos da USP invadiram a reitoria, e depois os da Unesp invadiram a sala do diretor, você sabe, uma sala um pouco maior que a minha, e também a cafeteria, não, não é cafeteria." Como se fala copa? "Invadiram a cozinha! Isso, a pequena cozinha onde se faz café para os professores, invadiram. - E aí chamaram a polícia. Isso..."

"Umh?"

"Isso faz sentido?"

"Bem, não. Não faz muito. Mas na universidade essas lutas não fazem sentido sempre. Você estava durante o nosso movimento?"

"A greve de fome?"

"É, também era sobre nada."

"O pior, o pior é que ninguém relaciona a greve dos professores com a invasão e a chamada da polícia. Ninguém."

Agora estávamos num campo conhecido, das coisas óbvias mas tão difíceis de compreender que era o nosso objeto de estudo. Agora, talvez, contando a greve de modo atropelado para alguém tão longe dela, eu pudesse dar-lhe um sentido. Claro, a greve já acabou. Professores retomam brigas interrompidas a respeito da grade horária e alunos rebeldes buscam emprego no departamento de marketing da Coca-Cola. Mas eu encontrava um sentido para meu incômodo e minha vergonha, mesmo que fosse um sentido patético, como disse Scheinkman na Folha.

Não sei se meu professor continua aprendendo algo quando vai visitar seus mestres idosos. Eu penso que continuo aprendendo algo de mim e do que se passa à minha volta - não com suas palestras, mas com sua escuta e com meus próprios esforços em encontrar a palavra certa, a história que faça sentido.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

A metamorfose

"A professora é hippie." Ela não perguntou nem acusou. Apenas constatou, olhando para minha cara, como se tivesse me visto do avesso. Mimada, rica e preguiçosa, eu não conseguia detestá-la como merecia. "A professora é hippie", ela disse, e uma coisa que eu nem era acabei sendo.

"Hoje só faltou o incenso, hein, professora?", me perguntou um aluno mais simpático uns anos depois, mas aí eu já tinha me conformado com a coisa.

Entre uma frase e outra fui testando minhas hippices, aula no jardim, bolinha de tenis, exercício do olhar e coisa e tal. Num curso de psicologia para administradores públicos, propus à classe estudar a psicologia humana a partir de quem realmente entendia, e não de uns cientistas metidos que apenas repetiam os primeiros em textos ruins. Homero, Shakespeare, Schnitzer, os autores de Genesis, Gogol, esses caras é que entendiam dos dramas humanos. Não iríamos estudar os textos, as técnicas narrativas, mas sim os personagens retratados. Ao final do curso um aluno disse que o que mais o impressionou eram as semelhanças, os mesmos sonhos, os mesmos medos, o mesmo ser humano. Sim, a solidão da Senhorita Else, a liderança desastrosa de Ulisses, o amadurecimento de Telêmaco, a rivalidade entre irmãos, o oportunismo do falso inspetor, tudo isso era de ontem e de hoje, li nos trabalhos dos alunos.

E a metamorfose? Pedi aos alunos que fizessem um teatrinho na aula, em grupos, jogo rápido, escolher uma cena e encená-la para a classe. Um grupo - futuros administradores públicos, lembrem-se - fez a primeiríssima cena, quando o monstruoso inseto tenta erger-se como gente mas consegue apenas balançar as patinhas nervosamente no ar. O aluno deitado na mesa do professor, e víamos as patas, não as pernas, ríamos todos e, talvez, angustiávamo-nos também.

Quase um século antes Kafka lia a metamorfose para os amigos em algum restaurante de Praga, fazendo-os rir. Depois o texto ficou sério com todos os pretenciosos comentários dos críticos, que às vezes detonam o texto e outras vezes valorizam a crítica. Mas naquela sala de aula no interior de São Paulo minha hippice trouxe a metamorfose de volta, nos fazendo rir de nossas angústias modernas.

Sala de professores

A sala de professores sempre me causou asfixia. "A Heloisa entra muda e sai calada", ouvi de um colega uma vez, reproduzindo o que o chefe de departamento pensava a meu respeito. Gosto de falar de alunos, discutir métodos de ensino, comentar notícias do dia, enfim, do que se faz em salas de professores. Mas a perspectiva de ter que entrar numa sala repleta de gente, "tudo bem? tudo bom?" me afeta a respiração e os batimentos cardíacos. A maior diferença entre ensino público e privado é essa: no ensino público temos uma sala própria.

O final dos cursos é sempre um momento de expectativa para mim. Que os alunos tenham dito que gostaram do curso ou não é menos importante do que a qualidade de seus trabalhos finais. Trabalhos bons me deixam satisfeita; trabalhos fracos esgarçam qualquer elogio. Como virão os trabalhos? Nas apresentações, eles revelarão coisas novas? Saberei fazer críticas que apontem novos caminhos?

"Ah, espero que passe logo a próxima hora."
"Você tem os dois horários?"
"Não, mas é prova. Olha, prefiro aula que prova. Prova, a gente olha no relógio, depois olha denovo e não passou um minuto. É fogo."

Tiro os olhos de meu Péricles, de Atenas, onde me distraio até 5 minutos antes da aula, quando vou esperar na porta a saída do outro professor. Olho para a professora, e pergunto silenciosamente por que ela dá prova, já que é tão chato assim. Volto ao Péricles, à minha mudez e às minhas expectativas até que a aula comece.