segunda-feira, 24 de setembro de 2007

O Quarto Herdeiro

O feijão-com-arroz de minhas aulas é o seguinte: dou perguntas com objetivos específicos sobre um texto ou tema, peço aos alunos para se dividirem em grupos e as discutirem, e vou passando de grupo em grupo para saber como vão indo. Depois fazemos uma discussão geral com as questões trazidas por cada grupo. A aula dessa semana era sobre a experiência urbana moderna, que trazia impessoalidade, especialização, liberdade, individualidade e riqueza. Lá pelo final da aula um aluno no fundo me pergunta o que a questão da especialização e da objetividade diz a respeito de sua futura profissão de funcionário da máquina pública. Eu, que me acho Ph.D. em relacionar teoria e prática, tive que pensar. Estava num plano abstrato, sonhava com os relógios de Simmel concatenando a vida em Berlin. Pedi ao aluno que esclarecesse melhor a pergunta enquanto eu pensava alguma coisa.

Retomei alguns exemplos dados um pouco antes, o do médico que lê imagens o dia todo, e o do revisor de textos de um jornal, que nunca entram em contato com ninguém mas que não podem esquecer que há um médico, ou um jornalista, e em última instância um paciente, e um leitor, que dele dependem. Também assim, o auditor das contas da prefeitura deve manter seu olhar objetivo sem perder de vista que o Estado está lá para prover serviços públicos, e que as contas que ele examina não são um fim em si mesmo; ele não pode ser perder em picuinhas nem aprovar algo formalmente adequado que esconde falcatruas.

Aí saí da pergunta e comecei a contar a história do apartamento do tio Gilberto, e dos inúmeros documentos que o juiz pediu para autorizar a venda do referido bem, e que incluiam o inventário do avô Miguel morto em 1937, o atestado de óbito do bisavô Jacob Schnaider em 1936, e - pasmem - o atestado de mudança de nome de meu pai de 1948, de Henry Pait para Henrique Pait, nome pelo qual foi conhecido a vida toda. Era óbvio que o juiz não pensou em justiça quando encalacrou a venda; era óbvio que não desconfiava de fato que havia maracutaia em nosso pedido de alvará, e sabia que não havia nenhum herdeiro enganado, perdido por aí nos últimos 70 anos, a quem não queríamos dar a quarta parte do apartamento da Melo Alves. Mas o juiz se enamorou por todos aqueles nomes, pelos erros de grafia, pelas mudanças de identidade e ideologia ocorridas ao longo do século XX. Justiça, o que tenho eu a ver com isso? Sou apenas juiz, veja bem.

Há algo mágico em contar uma história pessoal em sala de aula. As conversas paralelas se suspendem. Os personagens ficam grandes, vivos, importantes. Voltei ao assunto, e disse que os documentos extras não diziam nada ao juiz, e que se houvesse maracutaia eles estariam até melhor apresentados e mais coerentes que os que de fato contavam a vida de minha família. E que um mix de objetividade e subjetividade era necessário no exercício de sua função. Disse ainda que quanto mais documentos se pedem, pior fica para quem é idôneo, melhor para quem não é.

E aí houve a polêmica. "Do jeito que o brasileiro é malandro, se não tiver regra vira zona." Contra-argumentei com meu curso como prova material. Eu deixo vocês trabalharem em casa, não dou prova em aula, cobro apenas o que eu acho necessário para a realização do trabalho, e depois confio que vocês fizeram as entrevistas, leram os textos, produziram análises. Se eu pego alguém que burlou as regras, reprovo e pronto, mas não posso prejudicar o grupo todo por um que vai plagiar, e que vai ser desonesto de qualquer modo.

Afinal, eu sou responsável pelo desenvolvimento intelectual de vocês.

Já estávamos no final da aula das 9 da noite de quinta-feira, e veio também do fundo: "Mas como você pode valorizar tanto a responsabilidade individual de cada aluno e ao mesmo tempo atribuir a você a responsabilidade sobre o curso?"

Sim, como é que eu poderia? Como é que eu poderia me sentir responsável por algo que ia além de minha iniciativa pessoal? Como é que eu não apenas dava as aulas, indicava os textos e seja o que deus quiser? Como é que eu não fazia como o juiz e pedia uns documentos a mais, assim, só por pedir, sabendo que o quarto herdeiro só existia em seu cérebro de ostra, e que bandidos de verdade roubavam casas em processos fraudulendos ali mesmo, na sua própria jurisdição?

Disse que não era meu o mérito por trabalhos brilhantes de alunos que até desdenhariam de minhas orientações, nem minha a culpa por trabalhos ruins feitos por alunos que, digamos, não priorizaram o curso nesse semestre; mas que pela qualidade média dos trabalhos finais eu era responsável. Que uma explicação boa esclarece, uma orientação boa dá caminhos, um texto bem escolhido informa. Que era minha, sim, a responsabilidade. E que ela não excluia a a responsabilidade deles; eram antes complementares.

Eu sei, parece básico. Eu sei, alguém deveria ter dito a eles que a responsabilidade é algo que diz respeito a todos. Eu sei, não é matéria do meu curso. Mas está aí nos jornais, muita gente não sabe. E essas pessoas, em algum lugar eles estudaram, e a ninguém foi dito: é sua responsabilidade.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

É só um curso

O programa dizia que o curso seria sobre a questão da diferença em nossa sociedade, sobre como as construimos e as vemos, como as aceitamos ou rejeitamos. Dizia também que os alunos teriam que investigar em seu próprio cotidiano quem eram e como viviam os diferentes. No site, eu perguntava o que esperavam do curso, e a adesão a minha questão foi brutal: todos tinham o que dizer. Um aluno disse que o curso o faria refletir sobre como lidava com a diferença e o faria a partir disso uma pessoa melhor.

Na aula, era o momento de botar os pingos nos is. Disse que tinha ficado contente com as expectativas, respondi dúvidas, esclareci interpretações, enfim, botei todos no mesmo barco. Emendei: tem gente que espera que o curso o faça uma pessoa melhor; baixem a bola, isso aqui é só um curso, só vamos aprender algumas coisas, fazer o trabalho e pronto. É um curso.

Às vezes eu mesma esqueço isso; é só um curso, uma porção de textos lidos e escritos, notas e faltas, aprovado e reprovado, até à vista.

Fico olhando para minha tela, de onde podem surgir trabalhos e questões pelo site, esperando alguma coisa a mais. Os alunos deixam tudo para a última hora, sempre, então no limite do prazo que eu mesma dei a eles começo a ficar apreensiva: e se ninguém fizer os trabalhos? E se eu não tiver nada para ler? E se eles não tiverem feito os benditos exercícios que desenho com tanto cuidado: “Passem um dia observando em seu cotidiano tudo o que diga respeito de um modo ou outro com a globalização.”

Os trabalhos vêm em jorros, claro, nas últimas horas do prazo. Com temas diferentes e repetidos, com português cuidado ou de internet, com vozes pessoais ou chavões, um atrás do outro, pedindo comentários mesmo que depois reclamem, engraçados, tocantes, observadores, debochados. Sempre vêm, até agora. Sempre têm vindo. Leio, dou notas, eles reclamam como num curso, e nesse ato de dar notas e fazer reclamações estamos reafirmando, é apenas um curso, fiz isso pois é meu trabalho, fiz o tal passeio pois preciso do diploma. Eu não poderia dizer que quero que eles vejam o mundo e me contem o que viram, afinal adoro ouvir histórias, poderia?

É só um curso. Tenho que ensinar uns textos e dar notas para quem aprendeu. Terminamos o curso, uns aliviados que era só um curso, outros pessoas melhores, e a maioria um pouco na dúvida, era só um curso? Era, era só um curso.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Incompletude

De um aluno: "Meu sentimento de formando é que necessito agora entrar em uma faculdade."

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Uma professora excelente!

Uma aluna que reprovei por plágio está me dando um certo trabalho, mas não é que os colegas até que aprovaram minha postura inflexível, dizendo até que hoje, o que os alunos mais têm falta, é de uma autoridade firme e presente? É o que procuro ser, essa autoridade liberal nas idéias mas rígida nos princípios, onde discordar de mim é desejado, mas respeitar as regras obrigatório. Com a liberdade, quero que sintam o peso da responsabilidade, da decisão, que tenham que encarar as consequências dos atos, o que num país cheio de carimbos e anistias, convenhamos, não é pouco. Onde pouco fazemos sem permissão, mas sobre o que fazemos nenhuma responsabilidade temos... Com as regras, quero deixar claro minha visão sobre o que é certo e o que é errado. Plágio é errado. Trabalhar é certo. Respeitar opiniões diferentes é certo. Aceitar opiniões sem refletir, só porque veio do fulano ou cicrano, é errado. E assim por diante.

Nunca tentei nem construir nem destruir nenhum país, então a comparação talvez não caiba. Mas gostei do que essa professora disse outro dia no jornal: 'She said that she is looking forward to getting back into the classroom at Stanford, where she hopes to interact with students, to challenge them, to hear them out and perhaps to teach them a thing or two about what it’s like to be in the driver’s seat when a national-security crisis explodes.
“I would do a simulation with students, where they are given a problem, some hot spot in the world,” she said. “And over a week they’d have to be the national security adviser solving those problems.”
“All of a sudden,” she said, “it doesn’t look so easy.”'

Modestamente, não tenho a experiência de uma secretária de Estado para dizer aos alunos que não é lá muito fácil. Menos modestamente, sei que ter responsabilidade sobre o que fazemos não é lá muito fácil. A cada dia, na sala de aula, às vezes até deixando a máscara cair e revelando dúvidas e indecisões, procuro dizer aos alunos que não é lá muito fácil, na esperança perene dos bons professores, de que outros façam as coisas melhor do que nós mesmos pudemos fazer.