domingo, 18 de novembro de 2007

"Putaria"

Lembra-se daquela moda das camisetas pretas, com as palavras "dignidade" ou "respeito" escritas em maiúsculas brancas, sem mais nada, como se fossem statements completos? Respeito para quem, e por que? A quem faltava dignidade, a quem vestia, a quem lia a camiseta ou a um terceiro ausente? Camisetas caras, que ficam bem em gente que faz Pilates.

Eu dava aula num dia desses, naquela turma da noite divertida, quando um aluno fez um comentário muito pertinente. Escutei atenta, como sempre, até que caí na risada: "Turma, olha só esse colega de vocês, olha a camiseta dele, vocês viram? 'Putaria', está escrito 'putaria', olha só."

Era também um statement, sem alvo claro. Putaria era o que ele defendia, era o que ele denunciava? Ele retomou o comentário, eu procurei escutar mas disse, citando Goffman, que a incongruência entre seu figurino e seu texto me fazia cócegas. Contei que na minha época as distribuidoras de petróleo, com medo de estatizações, davam adesivos para vidros com os dizeres: "Petróleo, quem distribui também contribui." O DCE da USP lançou a paródia "Cannabis, quem distribui também contribui." Era aquele restinho da idade da ironia, que começa na terceira série do primário, não se se de acordo com Piaget ou comigo mesma, e tem fim indefinido.

Mas se o adesivo da maconha era meio datado, com toda a violência das drogas e coisa e tal, a camiseta da putaria me parecia bem apropriada. Nossas convicções são rasas, condensáveis em poucas palavras e, especialmente, fáceis de virar do avesso.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Filha da Rosa

Hoje pensei na minha mãe, que foi professora, vocês sabem. Inclusive às vezes digo aos alunos que seu nome era Rosa e se sentiria honrada em ser lembrada por jovens tão dinâmicos como eles, ainda mais no contexto da docência de sua filha.

No começo do ano fizemos uma homenagem a ela e chamamos os colegas do Mackenzie. O Orlando estava nostálgico da época em que dava aulas com minha mãe. Sorumbático, diria ela. Ou meditabundo, minha mãe era cheia de expressões. "Mas as aulas não tem animam, Orlando?", eu perguntei. "Ah, as aulas, eu não sou como a Rosa. Os alunos seguravam a Rosa depois da aula, a aula não era só uma aula."

É verdade, minha mãe chegava sempre tarde para o jantar, "Os alunos me seguraram." Não sei o que tanto tinham para perguntar para a professora de estatística, entre todos os mestres, mas que seguravam seguravam.

Se eu disser que tenho 15% da simpatia de minha mãe é um exagero. Sou chata, brava, crítica e pró-americana. Outro dia perdi a calma e abandonei-os por 10 minutos, batendo a porta, porque estava de regime e um aluno sussurou algo.

Mas eles me seguram depois da aula.

Ainda a deferência

Hoje fui à Fapesp assinar uns papéis mas chegando lá o prédio imponente de concreto me desnorteou e eu fui tirando os papéis da pasta sem saber o que com eles fazer. Haviam me dado, enfim, a grana para ir aos Estados Unidos, depois de umas tantas petições. Quem havia me dado? Era o mesmo parecerista que negou inicialmente? E por que agora me dava?

Mas na porta há apenas uns meninos em frente a computadores, como se você estivesse no laboratório Fleury e eles fossem coletar a sua urina para exames. Depois veio um homem e me tratou com deferência, uma deferência falsa, pois olhou meu jeans e meu jeito atrapalhado e pensou: não foi essa aí que escreveu a petição tão chique, foi outra (sim, pensei na clarice e na sua petição chique).

Imaginei que alguém tivesse treinado o homem, trate os afro-descendentes com respeito, trate os fisicamente desafiados com naturalidade, trate os bóias-frias do saber com delicadeza. Não importa o que a pessoa faz, lhe disseram, mesmo o mais humilde professor em tempo parcial merece consideração. Que não por outra razão, por ter preenchido todos esses formulários que a gente exige.

Saí de lá sem saber que experiência não vivida aquele encontro burocrático me recordava. Não era o Kafka, pois meu processo era cristalino, teria fim. Não era a visita de Arendt à Gestapo, se bem que essa tinha sido até bastante cordial. Não era o Detran, no Detran me assaltavam e aqui me faziam a gentileza de devolver parte do botim. "O dinheiro já deve estar aqui ainda antes do feriado, professora."

Um bolsa-família, um seguro-desemprego. Era isso. Depois veio um menino ainda mais coitado que eu pegar sua iniciação científica. Por que é que no Brasil até as instituições que funcionam tem essa cara de senhor de engenho?

sábado, 10 de novembro de 2007

Cachorro entra em sala de aula em universidade do interior

Um cachorro preto, vira-lata, entrou na sala de aula de uma turma de administração pública, em torno das 21:20h, quando os alunos ainda se acomodavam para uma aula de psicologia social.

Não tenho receio nenhum que essa notícia vá parar nos jornais, então confidencio-a a você com tranquilidade. Para mim parece importante, mas para os leitores dos grandes jornais brasileiros não será; às vezes acontece o contrário, e aí é preciso ter cuidado.

Os alunos quando entram na sala pensam se querem ficar perto do professor ou da porta, para o caso de a aula tornar-se insuportável; se querem ficar com os amigos e dar risada, ou com as meninas e fingir que precisam do caderno emprestado. O cachorro também tinha suas dúvidas e seus critérios, e olhou para um lado e outro, esticando o pescoço, enquanto descia as escadas da sala estilo anfiteatro.

Eu disse: "Olha lá, aluno novo!" Os alunos riram, "Transferiu da Sociais, viu que não tinha futuro." Eu ri.

Na aula anterior discuti como analisar entrevistas, o que destacar nelas, que ausências notar, onde elas expandem nossa compreensão das relações sociais. As questões dos alunos eram boas, sobre a isenção do entrevistado, sobre a indução das perguntas e coisa e tal. Nessa aula eu tinha me prometido não descontar nos alunos minhas frustrações com a escola; quem mais se prejudicava com isso era eu. Afinal, gosto de dar aulas, gosto de ensinar e se eu detonar esse espaço da sala de aula fico só com a riquíssima vida intelectual de minha universidade e morro de inanição.

Disse que não é preciso ser isento, nem possível. Mas que o distanciamento e o olhar objetivo devem ser buscados, citei Simmel e seu estrangeiro. Disse que às vezes nem isso é possível, e mencionei que naquele dia mesmo meu olhar objetivo não funcionou. Conta, professora. Não posso. Conta sim, conta o milagre mas não o santo. Contei, analisamos a situação e as causas de minha falta de objetividade. Rimos de tudo, de mim, da situação. No final, agradeci. E voltei à aula.

O cachorro, a minha confidência, estávamos ficando amigos, a classe e eu. Na semana seguinte dividi a classe em dois grupos, uns que defenderiam a tese de que existem razões legítimas para a ação americana em outros países, outros que diriam que o poder americano era só o que estava em jogo. Pedi que alguém moderasse o debate e entrei no grupo minoritário dos legitimistas.

"Bom, massa disforme de maria-vai-com-as-outras, comecem", eu disse, quebrando o gelo. O outro grupo pediu ao moderador a minha expulsão do debate e começamos. Eu tinha dúvidas se os parceiros do meu grupo estavam mesmo comigo ou se estavam lá por ironia, mas não, precisa ver que argumentos legais. Temas: tolerância cultural, consumismo, leis internacionais, a definição de legitimidade, relativismo de valores. Debate bom, com briga e tudo. Me alonguei numa intervenção, e escutei essa: "Democracia, democracia, no final das contas é a sua voz da autoridade que conta." E também essa, dirigida a um dos legitimistas: "A posição da professora ficou clara, as intervenções não tem razão econômica, são apenas voltadas à estabilidade mundial. Quero saber sua opinião, Portuga, você concorda com isso?" Pergunta feita com fel. O Portuga falou bem, disse que a professora tinha apenas ressaltado um aspecto, mas claro que questões econômicas também entram na equação. Trabalho de equipe.

Depois o pessoal do fundão que chegou atrasado queria participar, e o moderador os boicotava. Os dois grupos que já tinham, através do conflito, criado uma relação, se uniram: periferia, não vem que não tem. Olha aí o terceiro mundo querendo voz.

Enfim, tenho me divertido com esses meninos. Terminamos o debate às 22:30, com o ritual da chamada. Até às 23:00 os alunos me perguntavam: as perguntas que elaboramos para o trabalho estão boas? Falo com gente que fez intercâmbio ou não? Se eu quiser estudar fora como faço? E se o pessoal no Japão não responder o questionário? Etc., etc. De onde vinha - essa é a questão - a autoridade? Não a autoridade da chamada, das notas, mas aquela que os deixa até as onze da noite me fazendo perguntas, como se eu soubesse o que é melhor.

De onde vinha a deferência por meu conhecimento e experiência?, que é algo que estranhamente não é cultivado na universidade. É possível que ela até se manifestasse mais depois das brincadeiras, das confidências, de me verem disputando um debate de igual para igual. Mas ela não poderia vir disso. Acho que com essa turma acertei em dar uma aula inteira sobre minhas pesquisas, como faço entrevistas, como redijo meus textos. Se eu não tivesse Lattes, como descobri que tem gente que não tem, aí não teria essa aula. E talvez não tivesse a que ter deferência... E o respeito seria algo vindo da tradição apenas, do que os pais disseram que se deveria ter pelos mestres, sem vínculo com a experiência da sala de aula.

Sala de aula que é - como acredita essa boa aluna da sociologia americana - construída a cada encontro, a cada texto, a cada discussão. A deferência é algo que o professor tem que arrancar dos alunos a cada semana, como um feirante arranca da dona-de-casa a cada semana suas notas de dez. Se no final do curso os alunos não te perguntarem o que fazer da vida - não que você saiba, não que você não tenha a obrigação de dizer que não sabe - me desculpe mas talvez você seja melhor feirante que mestre.