sábado, 23 de junho de 2007

Era uma aula muito engraçada

Fazendo as contas, ali no lápis, é um cheque de 270 mil reais todo ano na mão de cada professor da universidade onde trabalho. Um cheque assinado: contribuinte paulista. Com esse cheque eu compro computadores, pago a luz, contrato assistentes, tiro xerox e até compro livros e pago meu salário. Dou bolsas para meus alunos mais criativos. Teve um ano que levei todos numa viagem pelo rio São Francisco. Tenho que deixar uma reserva para minha aposentadoria e a de meus funcionários…

Devaneio. O cheque se esvai, declaro ao fisco 30 mil, só isso, atraso condomínios. Os outros 240 mil, onde? O governador, filho de um comerciante do Mercado Municipal, provavelmente se fez a mesma pergunta e baixou os decretos incômodos. Eu chego à universidade em cima da hora, pois quero ir direto às aulas sem passar pelo departamento que se reunirá em conselho para discutir a grave crise. Cadeiras impedem a entrada às salas, alunas na porta do prédio, aula nos bancos de concreto em frente ao espelho d’água modernista.

Peço para não abrirem cadernos e rio quando toca um celular: boa idéia, conversem no celular, se alguém perguntar não estamos em aula, apenas discutimos a situação da educação no Brasil. Os alunos “do movimento” nos observam, mas respeitei o prédio invadido e eles respeitam minha aula secreta. Os professores me olham desconfiados, sou clandestina, uma professora, dentro de uma universidade, assim, dando aulas, que petulância! Deixo as alunas discutindo seus trabalhos finais entre si e vou à reunião. Sugiro a construção de uma agenda de debates sobre questões substantivas que afetam a universidade, me ignoram, trocam farpas prioritárias, peço licença, volto ao concreto.

O sol vai se pondo, talvez ali seja melhor mesmo para ter aulas. Mas no dia seguinte preferimos a sombra de uma árvore, bancos de concreto ao redor de uma mesa no gramado. Há mais alunos. Há mais idéias. Há mais projetos. A narrativa, a crítica do professor, a linguística, a cultura brasileira, a gramática viva. Tenho uma idéia: trabalhem com roteiros de filmes e novelas, os alunos vão adorar. Especulamos por que textos mais expressivos tem melhor gramática. Os passarinhos nos sobrevoam fazendo um barulho infernal, eu olho severa para cima e algumas alunas riem como se eu fosse lhes mandar “fechar o bico”.

“Eu articulo um movimento”, diz Caetano. Já nós vemos o movimento chegar com a bateria ensurdecedora e decidimos por um intervalo, nos reencontrando em minha sala em meia hora. Continuamos as apresentações dos trabalhos finais, e fechamos com uma breve avaliação do curso, que inclui vozes críticas depois de meu convite expresso, estranha democracia. Sensação de dever cumprido. Em casa, no site, as avaliações do curso por escrito: gostei do espaço para opiniões divergentes, pude refletir sobre minhas práticas, articulei teoria e realidade, no site vimos os trabalhos dos colegas. Parece que tenho um método, as avaliações se repetem a cada semestre, um Paulo Freire do ensino superior.

Na saída ainda encontro um ex-aluno, ocupando ludicamente a copa da faculdade, pode vir tomar café professora. Digo-lhe que a ocupação não favorece o debate aberto, ele conta que vão organizar uma série de debates sobre a universidade. Traga pessoas de fora, opiniões divergentes, o debate aqui está viciado, eu digo. “Opiniões contrárias”, ele repete pensativo, olhando para cima, imaginando esse debate onde não pensam todos igual. “Você se disporia, professora?”, me pergunta animado. Dever cumprido.

270 mil, 30 mil, computador, concreto, sala de aula, banco de jardim, greve, movimento, já não sei mais o que precisa para dar um bom curso. Precisa de tudo, precisa de nada. Por que os alunos vieram? Por que fizeram os trabalhos? Por que eu me esgueirei pelo campus para dar aulas? Era aula mesmo, ou, de fato, apenas discutíamos a situação do ensino no Brasil?

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