sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Os Salles de Santiago

Vi Santiago ontem, no Espaço Unibanco. É um pouco redundante isso, ver um filme de João Moreira Salles no cinema do “banco de papai”. Mas gosto do espaço Unibanco, e se algum dia ganhar na loteria vou botar o dinheiro no Unibanco, acho chique.

Quando vi o diretor numa palestra na Unicamp, uns anos atrás, achei o moço de uma educação, de uma delicadeza impressionante. Fiquei com a impressão de que talvez fosse nobre mesmo. De que nascer em berço de ouro, apesar dos meus marxismos e de minhas histórias de imigrantes, nos fizesse gente melhor.

Então me caiu o queixo escutar sua voz ríspida – e a de uma mulher que ele apresenta como amiga – se dirigindo ao idoso Santiago, antigo mordomo da casa de seus pais. O filme é sobre essa rispidez, que ao final Joãozinho expõe ao nosso riso, e sobre a qual ao longo do filme reflete.

Mas refletir sobre a rispidez não o exime de nada. Ela está lá, o tempo todo, diga isso, encoste a cabeça aqui, agora não, isso não, então diz. Aos meus alunos digo que é preciso escutar. Não dou Derrida nem Peirce, para não ficarem escutando fantasma de filósofo. Digo para abrirem os olhos e manterem as orelhas de pé. Digo para formularem questões só pra conduzir a conversa. Prometo que todos vão querer falar com eles, e que não é preciso interpretar nada pois as pessoas têm compulsão a dizer a verdade.

E eles me vêm com aqueles trabalhos divertidos.

Como é que um documentarista, e ainda por cima nobre, não soube escutar?

Aí talvez valham as histórias de imigrantes. “Shemá Israel”, escuta povo de Israel, é um mandamento ético. Escutar é algo solene. Nessa reza acho que Israel escuta Deus, e às vezes Deus escuta Israel, mas um pouco desse escutar divino está em cada escuta, em cada ato de parar o mundo e tentar adivinhar o que um outro é decifrando os sons que emite.

O filme também é sobre nobreza, e esse é o pulo do gato. Santiago era fissurado pelas nobrezas, todas, antigas, medievais, indígenas, sobretudo européias. Sonhou ser nobre na França, em plena revolução, diz o filme. Ao final do documentário vislumbramos um resto de gente nesse Santiago. O diretor abre uma pequena janela, e o filme fecha.

Mas faltou mesmo o pulo do gato. Faltou não apenas revelar Santiago como olhar o mundo com seus olhos – também procuro ensinar isso aos alunos, não é fácil, ver o mundo com os olhos do outro. E os olhos de Santiago mostrariam uma nobreza capenga, mamãe, papai e seus presidentes depostos, Joãozinho, o calor do Rio de Janeiro. Ou talvez até uma nobreza nobre, como a que vi na palestra da Unicamp, não sei. Mas queria saber quem eram os Salles no olhar de Santiago.

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